Trabalho doméstico: a volta à escravidão bancada por Temer

Aos nove anos, Edy Gomes saiu do interior do Tocantins para a capital goiana. Sua família, que na época passava por uma situação financeira bastante complicada, recebeu uma proposta tentadora: a menina iria morar com um casal – para ter oportunidade na vida – e, em troca, ajudaria nos afazeres domésticos. A possibilidade de conhecer um lugar novo, de poder estudar e ajudar os pais, deixou a pequena empolgada. Apesar de ser ainda criança, não pensou duas vezes, fez as malas e seguiu rumo a Goiânia.
“Eu tinha tanta coisa para fazer que
começava de manhã cedinho e só terminava tarde da noite”
No entanto, ao chegar à cidade, as coisas não ocorreram como imaginou. O mundo mágico se desfez quando Edy se viu em meio a situações humilhantes. Seus talhares eram separados dos demais. Era-lhe vedado comer ou beber qualquer alimento sem permissão dos donos da casa. Inúmeras vezes seu almoço foi o que sobrou no prato dos filhos dos patrões. Seu local de descanso era na cozinha, onde era colocado um pequeno colchão para que pudesse dormir. Aos finais de semana, enquanto a família passeava, a menina ficava trancada no apartamento. Não podia assistir TV ou tocar no aparelho de som. O sonho de estudar também foi por água abaixo. Apesar de estar matriculada em uma escola, a menina foi à aula poucas vezes, devido ao excesso de tarefas que lhe eram impostas.
“Eu tinha tanta coisa para fazer que começava de manhã cedinho e só terminava tarde da noite. Não tinha descanso e nem tempo de fazer qualquer outra coisa que não fosse cuidar da roupa, arrumar a casa e fazer comida; e, se caso parasse para retomar o fôlego, era castigada”, relembra Edy que, como milhares de crianças no Brasil, foi vítima de uma prática muito comum ainda nos dias atuais.

Aos 43 anos, Edy segue trabalhando como empregada doméstica, mas com uma realidade bastante diferente da que viveu na infância. Durante os governos progressistas de Lula e Dilma e graças a muita luta, a categoria conquistou alguns avanços, que em outros tempos eram impensáveis. O mais importante deles foi a promulgação da Emenda Constitucional n° 72, em 2013, conhecida como a PEC das Domésticas, que equiparou os direitos do emprego doméstico aos de outros trabalhadores. Em 2015, a Lei Complementar 150 regulamentou a profissão. A discrepância predominou por décadas e, em mais de 25 anos, o trabalho doméstico foi o ramo profissional com menos direitos trabalhistas no país.
“Até então, essas trabalhadoras eram tratadas como escravas. Dormiam em casa, num quartinho no fundo, não tinham direitos respeitados, nem hora para trabalhar. É possível que mais de 6 milhões de mulheres que trabalham cotidianamente na casa de seus patrões com essa caracterização possam não ter sido incluídas em nenhum patamar de direitos ao longo da história do Brasil”, explica a vice-presidente nacional da CUT, Carmén Foro.
A aprovação da PEC das Domésticas contou com intensa articulação da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Comércio e Serviços (Contracs). “Foi uma mobilização bastante importante. Entendíamos que os trabalhadores domésticos eram discriminados, no que diz respeitos aos direitos e benefícios. A Contracs encabeçou essa luta e conseguiu avançar a regulamentação da profissão, assegurando direitos importantes, que já eram gozados por outros trabalhadores”, explica o dirigente da entidade e secretário de Finanças da CUT Brasília, Julimar Roberto.

A consumação do golpe e o avanço de projetos retrógrados no Congresso Nacional, entretanto, trouxeram de volta a insegurança, e a precarização das relações de trabalho voltou a assustar os profissionais do ramo. A aprovação da reforma trabalhista, por exemplo, representou um enorme retrocesso ao grupo e possibilitou que direitos e garantias essenciais conquistados voltassem à estaca zero. De acordo com o Instituto Doméstica Legal, de 2015 para 2018, houve aumento de 23,2% na quantidade de diaristas em todo o país, passando de 1,5 mi para 1,8 mi.
“Com essa reforma, que alterou mais de 100 itens da CLT, a classe trabalhadora foi imensamente prejudicada e o trabalhador doméstico sentiu na pele outra vez a precarização. Praticamente, volta-se a estaca zero de direitos. O projeto retrocede tudo o que conquistamos, e casos como o de Edy podem voltar a acontecer sem qualquer respaldo”, explica o dirigente.
Dia Internacional do trabalhador Doméstico
No ultimo dia 22 foi comemorado o Dia Internacional do Trabalhador Doméstico. Apesar de ser uma data para se lembrar e reafirmar a importância da categoria, o que chama a atenção é a informalidade no setor e a desigualdade de gênero, classe e raça.
De acordo com dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 2017, há cerca de 7 milhões de pessoas no trabalhado doméstico no Brasil – representando 6,8% dos empregos no país e 14,6% das ocupações formais das mulheres. São três empregados para cada 100 habitantes. O grupo predominante feminino, afrodescendente e de baixa escolaridade.
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em parceria com a ONU Mulheres, realizou um estudo e constatou ainda que a desigualdade no setor predomina há vários anos. Em 1995, havia 5,3 milhões de trabalhadores domésticos no Brasil. Desses, 4,7 milhões eram mulheres, sendo 2,6 milhões de negras e pardas e 2,1 milhões de brancas. A escolaridade média das brancas era de 4,2 anos de estudo, enquanto que das afrodescendentes era de 3,8 anos.
Já 2015 o número de trabalhadores domésticos chegou a 6,2 milhões, sendo 5,7 milhões de mulheres. Dessas, 3,7 milhões eram negras e pardas e 2 milhões eram brancas. O nível escolar das brancas evoluiu para 6,9 anos de estudo, enquanto que, no caso das afrodescendentes, chegou a 6,6 anos.

Para Carmén Foro, vice-presidenta da CUT Nacional, essa desigualdade e discrepância de gênero podem ser explicadas como herança do período escravagista, considerando que o Brasil foi o último país no mundo a abolir a escravidão. “As mulheres negras são as últimas remanescentes reais do que foi a escravidão no nosso país. Com a reforma trabalhista, tudo o que nós construímos também vai por água abaixo. O que explica isso, é um sentimento de escravidão onde as pessoas continuam achando que podem ser servidas e quem serve não tem direito a nada”, explica.
Carmén ressalta ainda a necessidade de combater toda forma de exploração da mão-de-obra. “Não tínhamos nem saído de um patamar preocupante, estávamos em processo de construção de uma legislação que respaldasse o doméstico; e vem a reforma trabalhista retroceder a patamares anteriores. Além do desmonte do Estado e dos direitos, somos vitimas de uma sociedade que se aproveita da possibilidade de explorar cada vez mais quem está vulnerável. Esse é um grande desafio para nós combatermos”, finalizou.
Fonte: CUT Brasília